quarta-feira, 30 de abril de 2014

João Gabriel Ascenso

Em nossas artérias nossas raízes


chamaram raízes os finos rastros de tinta
            vermelha
ou as cordas que artérias ou fios
davam luz e lembravam terra

marcaram as vozes na pele
e chamaram raízes as vozes
            vermelhas
que cantaram braços e pulmões

marcas novas frescas na pele
            cinzenta
onde furos agudos
onde
ferros tantos
onde costa ereta, sinal de ônibus. Anemia

sobre a escultura do bíceps sobre
a dor descomunal de um piercing
traços frescos
            de tinta
vermelha
insinuando-se além da gasolina que queimava
para alimentar o refino da gasolina

além a tinta
            fresca
os fios que enfiavam sob a pele
para que fossem artérias
para que fosse corpo
            vermelho
cada pedaço da casa
que devoravam como terra
e como terra criaram raízes



(João Gabriel Ascenso, coleção Kraft)



terça-feira, 29 de abril de 2014

Daniel Russell Ribas



A escuridão
como um abraço
doce de metal
líquido quente
preto a luz
do luar
e rubro
na ponta
da língua.
Há sombras e sons
onde vivo
onde criei
o que não resta,
em que morro e mato
cercado
da sibilante vastidão vazia
de um sorriso torto
uma lata de cerveja meio vazia
e um foda-se para os céus
embalado pelo cheiro
do sangue e a dança
do vento noturno.


Daniel Russell Ribas criou e administra o blog "Poema Diário" há um ano. Eventualmente, ambos serão pó.



segunda-feira, 28 de abril de 2014

44 sonetos escolhidos - William Shakespeare



Soneto 123


Não! Tempo, não te regozijarás que envelheço:
Tuas pirâmides erguidas com nova força
A mim não surpreendem, nem estranham;
Apenas são visões de antigos lugares.
Nossos dias são breves e, portanto, admiramos
O que tu nos impõe que envelheceu;
E preferimos tê-los conforme nosso desejo,
A conhecê-los somente por suas lendas.
Desafio tanto as histórias quanto a ti,
Sem me importar com o passado ou com o presente;
Pois os teus livros e o que vemos ambos mentem,
Feitos, mal e mal, por tua contínua pressa:
  Isto eu juro, e assim será sempre,
  Serei verdadeiro, apesar de ti e tua longa foice.
 

Sonnet 123


No! Time, thou shalt not boast that I do change:
Thy pyramids built up with newer might
To me are nothing novel, nothing strange;
They are but dressings of a former sight.
Our dates are brief, and therefore we admire
What thou dost foist upon us that is old;
And rather make them born to our desire,
Than think that we before have heard them told.
Thy registers and thee I both defy,
Not wondering at the present nor the past;
For thy records and what we see doth lie.
Made more or less by thy continual haste:
  This I do vow, and this shall ever be,
  I will be true, despite thy scythe and thee.


(do livro “44 Sonetos Escolhidos”, Tradução: Thereza Christina Rocque da Motta, Ibis Libris Editora)



domingo, 27 de abril de 2014

Vozes d'América - Fagundes Varela

Soneto


Desponta a estrela d’alva, a noite morre,
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando, corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
As carícias d’aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh’alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! Mundo encantador, tu és medonho!


(do livro “Poemas de Fagundes Varela”, Cultrix)



sábado, 26 de abril de 2014

Manoel Ricardo de Lima



III


desvelo de ainda se, o silêncio,
um
é ponto contra (conversar) o
outro?

se silêncio não
apenas de dentro um?

se condição de estar
narrar silêncio
não dizer?

se guardar do outro silêncio
sempre apertado de mão beijo abraço
em recompor vazio de palavra?


(do livro “Inimigo Rumor, n.12”, co-ordenação do projeto: Carlito Azevedo e Osvaldo Manuel Silvestre, Editora 7Letras e Livros Cotovia)



sexta-feira, 25 de abril de 2014

Sonetos eróticos - Bocage



XVI

    

Convite à Marília


Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares o sutil nordeste
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste:

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!


(do livro "O delírio amoroso e outros poemas", L&PM Pocket)