segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A maldição de Sarnath - H. P. Lovecraft



Nathicana


Foi no pálido jardim de Zais;
Os nevoentos jardins de Zais
Onde enflora o argênteo nephalot
Que flagrante à meia-noite anuncia.
Ali dormem cristalinos lagos
E regatos que escorrem silêncios
Doces riachos da grutas de Kathos
Do crepúsculo, o berço sereno.
E cruzando por lagos, regatos,
Ficam pontes de puro alabastro,
Brancas pontes gentis cinzeladas
Com figuras de fadas e duendes.
Brilham ali sóis estranhos, planetas
E estranha é a crescente Banapis
Que se põe nas colinas relvosas
Onde adensa, na tarde, o crepúsculo.
Ali baixam os vapores do Yabon;
Alvos, lassos vapores do Yabon;
Foi ali, na voragem das névoas
Que avistei a divinal Nathicana;
De grinalda, virginal Nathicana;
Negras mechas, esguia Nathicana;
Olhos negros, gentil Nathicana;
Lados rubros, querida Nathicana;
Voz argêntea da doce Nathicana;
Vestes alvas da amada Nathicana.
E minha amada ficou para sempre,
Desde o tempo em que tempo não havia
Desde o tempo em que estrelas não havia
E que nada existia salvo o Yabon.
E vivemos em paz pelos tempos,
Inocentes crianças de Zais,
Percorrendo caminhos e arcadas
Coroadas com a alva nephalot.
Quanta vez ao crepúsculo vogamos
Sobre pastos, colinas floridas
Alvejadas pela humilde astalthon;
A humilde e graciosa astalthon,
E sonhamos em um mundo de sonhos
Belos sonhos, mais belos que o Éden;
Sonhos puros, mais reais do que a razão!
E por eras sonhamos, nos amamos,
Até a horrenda estação de Dzannin;
Remaldita estação de Dzannin;
Onde rubros eram os sóis, os planetas,
Rubra ardia a crescente Banapis,
Rubros vinham os vapores do Yabon.
Encarnavam-se as flores, os regatos
Sob as pontes, os lagos serenos,
E até mesmo o suave alabastro
Refletia escarlates sinistros
Tal que as fadas e duendes espalhados
Espreitavam encarnados das sombras.
Vermelhou-se-me agora a visão.
E pela densa cortina espreitando
Louco vi a etérea Nathicana;
A inocente, sempre alva Nathicana
Adorada, intocada Nathicana.
Mas cumuladas vertigens de insânia
Enevoaram-me a difícil visão;
A maldita, avermelhante, visão
Refazendo o mundo em meu ver;
Novo mundo escarlate e sombrio,
Um horrendo estupor, o viver.
Mergulhado no estupor do viver
Vejo claros fantasmas da beleza
Poucos, falsos fantasmas da beleza
Mascarando as maldades de Dzannin
Eu os vejo com infinita saudade,
Tal e qual minha amada os vê:
Mas seu Mal brilha em seus olhos turvos;
Seu pungente, impiedoso Mal
Mal maior que o de Thaphron ou Latgoz
Mais cruel pôs que oculto no belo.
E somente no sono da meia-noite
Vejo a dama perdida, Nathicana,
Vejo-a pálida, pura Nathicana,
Desfazendo-se ao olhar sonhador.
E incansável procuro por ela;
E procuro entre goles de Plathotis
Fermentado no vinho de Astarte
Engrossados por lágrimas incessantes.
Eu anseio pelos jardins de Zais;
Jardins belos, perdidos, de Zais
Onde o alvo nephalot floresce.
Da meia-noite o arauto fragrante.
O fatal sorvo final vou urdindo;
Sorvo tal que deleite os demônios;
Sorvo tal que a vermelhidão encerre;
O horrível estupor que é o viver.
Muito em breve, se a mistura for certa
Vermelhão e insânia se irão,
E apodrecerão no negror verminoso
Vis cadeias que me escravizavam.
E os jardins de Zais novamente
Serão alvos em minha magoada visão
E ali, entre os vapores do Yabon
Estará a divinal Nathicana;
Restaurada a imortal Nathicana,
Outra igual, entre os vivos, não há.


(do livro "A maldição de Sarnath", Editora Illuminuras)



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