domingo, 16 de fevereiro de 2014

Polonaises - Paulo Leminski


dança da chuva

senhorita chuva
me concede a honra
desta contradança
e vamos sair
por esses campos
ao som da chuva
que cai sobre o teclado

*

aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
pra ser olhado

foi mar
pra tudo que é lado

*

um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar

me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar

a este deus
que levanta poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro

nele cresça
até virar vendaval

*

um passarinho
volta pra árvore
que não mais existe

meu pensamento
voa até você
só pra ficar triste

* * *

tenho andado fraco

levanto a mão
é uma mão de macaco

tenho andado só
lembrando que sou pó

tenho andado tanto
diabo querendo ser santo

tenho andado sem pai

yo no creo em caminos
pero que los hay
                          hay


* *

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores

* *
*

um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota

*

Meu avô-macaco
Aquele que Darwin buscou
Me olha do galho:
Busca a força dos caninos
O vigor dos pulsos
O arfar do peito
O menear da cabeça
O trabalho

Tudo se foi

Nada mais resta
Do fulgor primata
Da força de boi

Saber
Saber mata

* *


(do livro “Toda poesia”, Companhia das Letras)





Um comentário:

  1. Bom dia, Danie. Excelentes poesias li por aqui.
    Com muito prazer sigo o seu blog.
    Parabéns!
    Tenha um dia de paz!
    Beijos na alma!

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