domingo, 30 de junho de 2013

Dentro da noite veloz - Ferreira Gullar

Agosto 1964



Entre lojas de flores e de sapatos, bares,

        mercados, butiques,

viajo

        num ônibus Estrada de Ferro – Leblon.

        Volto do trabalho, a noite em meio,

        fatigado de mentiras.

 
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,

relógio de lilases, concretismo,

neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,

        que a vida

        eu a compro à vista aos donos do mundo.

        Ao peso dos impostos, o verso sufoca,

a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

 
        Digo adeus à ilusão

mas não ao mundo. Mas não à vida,

meu reduto e meu reino.

        Do salário injusto,

        da punição injusta,

        da humilhação, da tortura,

        do terror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato

 
um poema

uma bandeira
 
 
(do livro "Toda poesia", José Olympio Editora)
 
 
 

sábado, 29 de junho de 2013

Li Bai

Bebendo sozinho


Sentado, bebo sozinho

            indiferente ao crepúsculo.

As flores caídas

            acumulam-se nas dobras

            de minha túnica.

Bêbado, me levanto

            e procuro a lua nas águas.

Os pássaros já se foram todos.

            São raros os passantes.





(do livro "Poemas chineses clássicos", Li Bai, Du Fu e Wang Wei, Tradução: Sérgio Capparelli e Sun Yuqi, L&PM Pocket)


sexta-feira, 28 de junho de 2013

tudos - Nina Rizzi

noturno


depois, como se não findasse o cio,

dava pena sentir tanto amor.


(do livro “tambores pra n’zinga”, Multifoco)
 
 
 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Poemas para flauta e vértebra - Claufe Rodrigues

Escreva sua história


Escreva sua história na areia da praia

Para que as ondas a levem através dos sete mares

Até tornar-se lenda na boca de estrelas cadentes.

Conte sua história ao vento.

Cante-a nos bares para os rudes marujos

Aqueles cujos olhos são faróis sujos, sem brilho.

Escreva no asfalto, com sangue,

Grite bem alto a sua história,

Antes que ela seja varrida na manhã seguinte pelos garis.

Abra o peito na direção dos canhões!

Derrube os muros de Berlim!

Destrua as catedrais de Paris!

Defenda sua palavra.

A vida não vale nada

Se você não tem uma boa história para contar.


(do livro "Escreva sua história - antologia poética", da Editora Fivestar)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Duas caras - Braulio Coelho

Sinônimo


guardo no bolso

provas concretas

 
do que ando fazendo

por aí

 
tenho escrito coisas

incríveis sobre as perdas

 
mas nem por isso

atendo por

gentileza.


(do livro "Duas Caras", Editora Oito e meio)


terça-feira, 25 de junho de 2013

Fernanda Otoni

Durma em paz


Não quis magoar

Mas agora é tarde, a magoa ficou

Mesmo com meu coração repleto de amor e carinho

Fiz você chorar quando estava sozinho

Quando mais precisou de um sorriso e conforto

Fui um ser "escroto"

Desculpe-me

Por meu coração falar mais alto que a razão

Sei que talvez não tenho chance de perdão

Mas nada do que disse e senti foi em vão

Talvez agora seguiremos em paz

Durma em paz

Seja a paz

Pomba branca que agora voa ao encontro de seu ninho

Terá alguém que te acolha com afeto

Faça de você um feto

e cuide do seu caminho.

 
(Fernanda Otoni - 22/10/2012 - 21:32h)
 

Carioca, 27 anos, atriz formada pela Nova Escola de Teatro/SATED RJ.

Depois de uma breve experiência na oficina de teatro livre do CEI e de participar da CIA DE ARTE E TEATRO POPULAR de Jacarepaguá, se profissionalizou na ‘Nova Escola’ tendo como mestres, expoentes como Cico Caseira, Marcela Andrade e Gabriel Cortez. Participou de workshops e de dias inteiros dedicados à experimentações artísticas.

Atualmente, se dedica à poesia. “Está sendo muito novo pra mim. Tenho uma página no facebook onde posto pensamentos, reflexões....Me apoio em imagens, vivências, personagens. É um universo que eu sempre gostei. Estou me sentindo cada vez mais parte disso tudo.”

Por Leandro Moura



segunda-feira, 24 de junho de 2013

O olho imóvel pela força da harmonia - William Wordsworth

Solitário qual nuvem vaguei


Solitário qual nuvem vaguei
Pairando sobre vales e prados,
De repente a multidão avistei
Miríade de narcisos dourados;
Junto ao lago, e árvores em movimento,
Tremulando e dançando sobre o vento.

Contínua qual estrelas brilhando
Na Via Láctea em eterno cintilar,
A fila infinita ia se alongando
Pelas margens da baía a rondar:
Dez mil eu vislumbrei num só olhar
Balançando as cabeças a dançar.

As ondas também dançavam neste instante
Mas neles via-se maior a alegria;
Um poeta só podia estar exultante
Frente a tão jubilosa companhia:
Olhei – e olhei – mas pouco sabia
Da riqueza que tal cena me trazia.

Pois quando me deito num torpor,
Estado de vaga suspensão,
Eles refulgem em meu olho interior
Que é para a solitude uma bênção;
Então meu coração começa a se alegrar,
E com narcisos pôs-se a bailar.


I wandered lonely as a cloud

I wandered lonely as a cloud
That floats on high o’er vales andhills,
When all at once I saw a crowd,
A host, of golden daffodils;
Beside the lake, beneath the trees,
Fluttering and dancing in the breeze.

Continuous as the stars that shine
And twinkle on the milky way,
They stretched in the never-ending line
Along the margin of a bay:
Ten thousand saw I at a glance,
Tossing their heads in springhtly dance.

The waves beside them danced; but they
Out-did the sparkling waves in glee:
A poet could not but be gay,
In such a jocund company:
I gazed – and gazed – but little thought
What wealth the show to me had brought:

For oft, when on my couch I lie
In vacante or in pensive mood,
They flash upon that inward eye
Which is the bliss of solitude;
And then my heart with pleasure fills,
And dances with the daffodils.


(do livro “O olho imóvel pela força da harmonia”, Tradução e Apresentação: Aberto Marsicano e John Milton, Ateliê Editorial)




domingo, 23 de junho de 2013

Retro-Retratos, Celina Portocarrero

Rebirthing

 
Em mares

de lágrimas virgens

quero lavar meu sangue,

descontaminar a alma,

trocar os genes,

me livrar da praga.

Pra viver sem desabar,

prosseguir sem repetir,

ir em frente sem voltar,

renascer no pôr do sol,

esquecer de me lembrar,

só levar o que escolher.


(do livro "Retro-Retratos", Editora 7Letras)


sábado, 22 de junho de 2013

Bruna Beber

Romance em doze linhas



quanto tempo falta pra gente se ver hoje

quanto tempo falta pra gente se ver logo

quanto tempo falta pra gente se ver todo dia

quanto tempo falta pra gente se ver pra sempre

quanto tempo falta pra gente se ver dia sim dia não

quanto tempo falta pra gente se ver às vezes

quanto tempo falta pra gente se ver cada vez menos

quanto tempo falta pra gente não querer se ver

quanto tempo falta pra gente não querer se ver nunca mais

quanto tempo falta pra gente se ver e fingir que não se viu

quanto tempo falta pra gente se ver e não se reconhecer

quanto tempo falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu.
 
 
(do livro "Amar, verbo atemporal", organização: Celina Portocarrero, Rocco)
 
 
 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Poemas malditos, gozosos e devotos - Hilda Hilst

X


Atada a múltiplas cordas

Vou caminhando tuas costas

Palmas feridas, vou contornando

Pontas de gelo, luzes de espinho

E degredo, tuas omoplatas.

 
Busco tua boca de veios

Adentro-me nas emboscadas

Vazia te busco os meios.

Te fechas, teia de sombras

Meu Deus, te guardas.

 
A quem te procura, calas.

A mim que pergunto escondes

Tua casa e tuas estradas.

Depois trituras. Corpos de amantes

E amadas.

 
E buscas
A quem nunca te procura.


(do livro "Poemas malditos, gozosos e devotos", Editora Globo)
 
 
 
 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A timidez do monstro - Paulo Scott

A gravidez do limo


tolero a mama do ferro

e tuas mãos castas

plantadas na varanda

(à folga de ameno)

 
as falanges estouram

feito balões

garram nas palmas

destroncadas

 
e você... é generosa

ao provocar o tamanho sombrio

das asas que em minhas costas

não servem



(do livro "A timidez do monstro", Editora Objetiva)


quarta-feira, 19 de junho de 2013

Flávio Corrêa de Mello

Flores mortas

Quando se enterra,
se crava ou se escava
os dedos na terra
e se olha não a bela
mas aquela flor lenta,
e que de secas as pétalas
as pedras mais água têm;

quando o corpo é o osso
reumático, anoréxico,
e ainda a teimosia avara
que estala todo o plexo,
nervoso, perplexo,
de tudo o dificultoso
de ir à terra e revirá-la;

Quando se carquilha
e já é morta a raiz,
as flores já sem vulto,
qual dentre elas levantara
diante de meus olhos
a ausência do mundo,
esse horror profundo?



http://riomovedico.blogspot.com.br/

 
Flávio Corrêa de Mello (RJ) é professor e escritor. Publicou Poemas Suíços (2004) e Rio Movediço (2013). Participou do movimento literário Bagatelas atuando como ponte entre escritores lusófonos e mantendo uma coluna semanal. Possui textos publicados em diversas colunas e revistas literárias (inimigo rumor, entrelivros e etc). Em 2013, coordenou o projeto de literatura Rumos da Palavra, do SESCRIO e ministrou a minioficina Conceição eu conto, no FIM de Semana do Livro – Morro da Conceição. Também publicou o conto Sabido, Sabidinho no livro Porto do Início ao Fim, que celebrou a abertura do evento.



terça-feira, 18 de junho de 2013

Rafael Zacca

A gesta de Diomedes



Perguntei à cidade:

-O que luta em teu domínio?


Respondeu-me, impassiva:

-Lutam os carros, pesadas carcaças

de metal e substancial fumaça

lutam as raízes das árvores

contra as calçadas como filhos

nascendo à revelia do desejo

de que não viessem

lutam as luzes em fachos

quase-fictícios, qual sonhos

arcaicos que reprimimos

da era nada longínqua

em que nos criamos

próximos das estrelas

lutam os travestis contra os imbecis

assim como lutam as botas nobre-e-caras

contra os canivetes escondidos nas bolsinhas

lutam os amantes, em diversas modalidades

da luta livre à capoeira, do boxe ao muay thai

e quem se distrai, ou baixa a guarda

acorda em uma cama de hospital

e lutam os pacientes do hospital

pelo soro da compaixão

lutam as aparelhagens contra a natureza implacável

caixas de metal contra o Sol

armações de alumínio contra a Chuva

antenas prateadas contra o Relâmpago

fones de ouvido contra o Homem.


Isto respondeu-me a cidade.

Para ela, então, armei-me.

Marcharam, amancebadas, contra mim

a Beleza e a Guerra.


A primeira feri no punho

para ver sangrar o róseo.

Dele bebi, e não o quis mais.

 
A segunda feri no peito.

E o seu grito pavoroso superava

o alarido dos homens amedrontados.


http://cancoesdeamoreguerra.tumblr.com


Rafael Zacca é poeta, crítico, e se mete com história e filosofia. Nasceu em 1987 e desde então vive indeciso no Meier. Mantém um laboratório online para uma história sem fatos do amor e da guerra.
 
 
 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Em alguma parte alguma - Ferreira Gullar

Toada à toa


 A vida, apenas se sonha

que é plena, bela ou o que for.

Por mais que nela se ponha

é o mesmo que nada por.

 
Pois é certo que o vivido

 – na alegria ou desespero –

como o gás é consumido...

Recomeçamos de zero.


do livro "Em alguma parte alguma", José Olympio Editora)


(

sábado, 15 de junho de 2013

Canto dos sinais - Natan Alterman

Canto dos sinais



Esta noite um pássaro gritou amargura

como se viessem arrebatar-lhe a alma.

Voou da tua mão esta noite o espelho,

teu vestido esta noite rasgou-se em luto

e contrariada te sentaste para cerzir o rasgão,

e eis que o sangue manchou tua agulha.

Não abras teu coração aos sinais.

Que o medo não arda em teus olhos.

Pois os sinais anunciarão o bem,

pois é a alegria que bate às portas

pois eles não são para ti mas para teus carrascos.

Minha filha, se os cães uivam na cidade

não é sinal de que um anjo passa pela cidade.


Minha filha, se um anjo passa pela cidade

não é sinal de que haverá luto na cidade.

Pois olhos se acenderão, filha,

e céus cintilarão, filha,

e anos passarão, filha.

E os grandes sinais se manifestarão,

e não terão mentido os sinais,

humildes e pobres se alegrarão,

pois é a alegria que bate às portas.

Eu sofro, sofro por teu coração amargo,

como se voltassem a arrebatar-me a alma.

Eu, que não tenho sonho, que não tenho luz,

sonhei-te pesadelo no fim da caverna;

ao despertar, teu sorriso despedaçado brilhava,

e em tua mão o sangue tinha manchado a agulha.

Pois a linguagem dos sinais é clara,

e ei-la diante dos meus olhos e dos teus.

Não é o bem que os sinais anunciarão,

não é a alegria que bate às portas,

pois ela não é para ti mas para teus carrascos.

Minha filha, se uivam cães na cidade,

não é sinal que um anjo passa pela cidade.

Minha filha, se um anjo passa pela cidade,

não é sinal de que se morrerá como tu na cidade.


Que os teus ombros se preparem, filha,

pois ainda não acabou, filha,

e até o fim não terá piedade, filha,

e virá um sinal, o último, filha.

Bebe nosso cálice até as fezes.

Essa é a nossa sorte – suportar os sinais.

Tu, minha única! Sê forte e corajosa!

Não é a alegria que bate às portas.


(do livro "Prosa e poesia de Israel", Tradução: Cecília Meirelles, Edição especial do Departamento Cultural da Embaixada de Israel, 1968)


sexta-feira, 14 de junho de 2013

Isaac Frederico

Inebriante



Era virgem.

Até que, no limite,

Explodiram-lhe os hormônios.

Que libido resiste

Aos doces demônios

Clamando por sexo?


A primeira estocada

Abriu-lhe, dolorosa,

Os grandes lábios, inchados;

Tímida mas fogosa

Gozou como se em guerra.

 
Estocou no vente o fértil leite

Do macho que lhe fodeu

À alta madrugada;

E as gotas que lambeu

Da quente rola, já cansada –

As poucas que sobraram.

 
Fêmea inebriante,

Linda mulher e já completa,

Os bagos roçando-lhe as nádegas,

Cadenciando a foda seleta

Dos gozosos e amantes seres,

Ofegantes nos tantos prazeres

Da cópula, de amor repleta.

 
Já sem ar deitou-se, jeitosa,

Acomodou-se no peito parceiro,

Suspirou com uma graça felina

E fez-se um sonho fagueiro –

Total triunfo da Natureza,

Fêmea fodida feliz,

Em sua voluptuosa beleza.
 
 

(do livro "Poesias Pornográficas", organização: William Galdino e Barateza Duran, Editora Cozinha Experimental)
 
 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Marisa Vieira

A fila anda II


de repente, assim
falar de amor
que você me causa calor
como se não soubesse

Deus ouviu minha prece

Que faço eu agora
a prece veio fora de hora
o calor que sinto vem de outro corpo
um fogo que não me apavora

minha alma acreditava
que só a você eu poderia amar
sentia com ela, mas meu coração
foi mestre na traição




Brasilense. Instinto poético.
Não entendo de regras para escrever, acho que nem de sentimentos entendo, mas os tenho por isso escrevo.