quinta-feira, 31 de julho de 2014

Um útero é do tamanho de um punho - Angélica Freitas



A mulher é uma construção

a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista 
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida
digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção
com buracos demais

vaza 
a revista nova é o ministério
dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)
você é mulher
e se de repente acorda binária e azul
e passa o dia ligando e desligando a luz?
(você gosta de ser brasileira?
de se chamar virginia woolf?)

a mulher é uma construção
maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay 
como é bom ter amigos

todos os amigos tem um amigo gay
que tem uma mulher
que o chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde
as psicólogas do café freud
se olham e sorriem

nada vai mudar -
nada nunca vai mudar -

a mulher é uma construção


(do livro “Um útero é do tamanho de um punho”, Cosac Naify)



quarta-feira, 30 de julho de 2014

O mundo dos que se levantam sem náusea - André Zahar



Filofobia


Eu sou
o moinho
a imprensa marrom
a varize
na parede do sonho
o editorialista
pré-rafaelista
inimigo da perspectiva
do dark side de Pìnk Floyd
da fase azul de Picasso.

Ofereço polidamente
a quem sofre porque sente
a noção clara
de certo e errado
o olhar sem linha de hesitação.

Ao viado
ópio publicitário:
compre aproveite não perca.
Chão de fábrica
para o desterrado.

Eu sou a liquidez de mercado
            dos gênios de 27.

A misantropia
            das bombas de fragmentação
             dos protestos da mais alta
              estima e consideração.

Sou filofobia
cortinas fechadas
vida partida.

Tratores que destroem mangues
levam meu nome
e no motor
meu ódio,
que compacta a criação.

Eu sou
a utopia
de um mundo
que seja apenas
trabalho
e genitalização


(do livro “mafuá – autoajuda para mamutes”, Editora Baluarte)



terça-feira, 29 de julho de 2014

Juliana Amato


hace um año que te fuiste
tan pronto irás, una vez más

neste exato momento me vejo num quarto
fechado
frestas abertas, a janela
você ainda criança atrás da cortina
observa

você, observo seu olhar
compreende:
não existe mãe no brasil
não existe casa, essa casa, aqui


há o futuro e há tudo
há milhares de rochas
pedras pontiagudas
traiçoeiras

pensa na sua casa
sua casa tão longe, aqui,
uma pedra quente
e lisa


Juliana Amato é paulista. Edita, traduz, revisa e escreve. Publicou em sites, coletâneas de contos, de poemas, de traduções – reais e virtuais. Tem muitos projetos que ainda não saíram dos planos, mas entre os que já existem estão: Brevida (EDITH, 2011), diário aleatório (diarioaleatorio.co) – site/livro em parceria com Thany Sanches e Jezebel (www.boca-santa.com/boceta), ilustrado por Mariana Coan, integrando o projeto Boca Santa. Os poemas selecionados fazem parte de correspondência, seu primeiro livro de poesia, a ser lançado em agosto pelo selo Poesia Menor. Escreve há algum tempo no microclima (julianamato.blogspot.com), que está um pouco abandonado, mas pretende renascer dos escombros.



segunda-feira, 28 de julho de 2014

De Profundis - Georg Trakl



Ocaso

5ª versão
A Karl Borromäus Heinrich

Sobre o lago branco
Partiram os pássaros selvagens.
No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado.

Sobre os nossos túmulos
Inclina-se a fronte despedaçada das trevas.
Sob carvalhos, balançamos numa barca prateada.

Sempre ressoam os muros brancos da cidade.
Sob arcos de espinhos
Oh, irmão, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite.

(1913)

Untergang

5ª Fassung

An Karl Borromäus Heinrich

Über den weissen Weiher
Sind die wilden Vögel fotgezogen.
Am Abend weht von unseren Sternen ein eisiger Wind.

Über unsere Gräber
Beugt sich die zerbrochene Stirne der Nacht.
Unter Eichen schaukeln wir auf einem silbernen Kahn.

Immer klingen die weissen Mauern der Stadt.
Unter Dornenbogen
O mein Bruder klimmen wir blinde Zeiger gen Mitternacht.

(1913)

(do livro "De profundis", tradução: Claudia Cavalcanti, Editora Illuminuras)