A Copa espoliada
"Copa
do Mundo não se faz com hospitais".
Ronaldo Mafiômeno
I
Certo
está o megalômano burguês-jogador, empresarião,
pseudo-herói
de gana balofa, grana incontável no bolso-banco.
Danem-se
o reclamante o vândalo a estudantada o manifestador
–
que lhes baixem o sarrafo! E deem também no trabalhador!
Que
virem só carniças, brada o bufão.
Copa
do Mundo se faz com Fifa, sem culpa,
país
à rifa, povo na curra ou na cova
(aí
depende do estrato social!).
Copa
do Mundo se faz com upepê a prensar com os andrajos,
upa,
neguinho! na malandragem, inferno aos enfermos e,
se
necessário, porrada em quem educa, para que aprendam.
Ao
museu com a ginga, a gira, a gíria, o xingo, o chute.
Copa
do Mundo não é pra viração, é rolo sério!
Não
mais Preguinhos, Garrinchas, Didis, Barbosas, derrotas.
Jamais
Romários e suas romarias críticas
por
outros torneios.
Qualquer
multa é a alma que paga.
II
Um
sigladeio sem fim toma conta das cidades-sede.
O
asfalto cede a uma trama de bê-erres, trans, vê-eles,
um
canteiro de obras, túneis, oba-obas, tanques.
Pedestres
não são bem-vindos. Nem pobres.
Que
passeiem para lá!
A
zanga, entretanto, chega às ruas principais.
Pedras,
sprays, fumaça, bombas, greves mancham a bela paisagem
ofertada
pela regra-venda que serve de tapa-olhos
mas
não tampa o tanto de buracos que se podem cravar
num
peito desamarrado.
Pernas
que ainda driblam precisam ser urgentemente
ceifadas
e os braços que carreguem bebês e foices, podados.
Tem
que botar ordem nesta casa!
Policiais
desenvolvem uma tática apimentada,
organizam-se
como uma boa zaga.
No
treinamento avisaram: sem covardia!
Partam
pra cima dos terroristas!
Pau
nessa putada!
III
Somos
neoíndios assaltados, removidos, descartáveis
em
nossa aldeia periférica. Nossa várzea tornou-se
grama
sintética. Nossos desejos foram pilhados.
Ora
moramos em um território vago, que ocupamos.
Somos
a bola fora da cena, anfitriões nômades do
próprio
espetáculo, espelhácido de nós mesmos.
Nossa
vuvuzela não passa de uma corneta.
A
festa foi implantada, transe induzido por mutretralhas
contrabandeadas,
num trânsito feroz de muambas e tretas.
IV
Por
ofício do processo civilizatório, convém eliminar
o
perfume velho, o ranço do tempo, os templos de saudade oca,
as
identidadezinhas desse pessoal sem vínculo com o
progresso
que vem com suas vidraças reluzentes,
sua
ilha de calor que afaga, seu fogo para o consumo
que
nos impulsiona.
Vai
abaixo, Maraca! Desencarna. Descansa.
Em
seu lugar reinará um arenão fake,
clone
coxinha, padrão cópia.
Meninos
antigos, barba grisalhada em sonhos
úmidos
de lembranças inúteis, aproveitem
e
se retirem também. O ingresso aqui vai ser caro.
Seu
troco não dá nem pro lanche!
Os
fantasmas que caminhem por seus corredores,
seus
arredores. Memória, ao contrário da Naique,
não
dá camisa a ninguém.
V
Gostamos
de futebol. O futebol é que não gosta mais de nós.
Vivemos
um Maracanazo particular, só nosso.
Este
Maracanazo se iniciou com o fechamento da geral,
passou
por reformas que diminuíram as arquibancadas
e
culminou com a derrubada de tudo.
O
elefantão é de elite, não de elos.
Ele
exclui, não junta.
Restamos,
mudos. Depois mudados, também.
A
poeira que subiu, depois desceu,
agora
grita, se agita, se espalha, age, briga.
Nosso
berrante farfalha o eco
do
que fomos e precisamos voltar a ser.
Ou
do que sequer tivemos a chance de nos tornar.
Oprimiram,
bateram, suprimiram.
Temos
– ou somos – as cartas.
Se
no baralho mandam de cima, nos sobra o fazer barulho.
Passou
da hora de cortar o monte,
pegar
o morto e mostrar quem dispõe de melhor mão.
Pôr
a mesa ao alto, por debaixo!
VI
Anônima
a gente passa.
O
show continua sendo transmitido pela televisão.
O
jogo não é jogado, o jugo é imposto,
pisa
e massacra de modo silente cada rosto.
É
gol! Vamos comemorar, com a pulga atrás
das
orelhas. A malta, encolhida, pula no vazio.
só
carcaça.
Com
raça, o escrete luta, vibra. Quer a taça
da
Copa espoliada pela banca rota, troféu de sabor perdido
por
conta do tino-monstro do tamanho do negócio.
Tímido,
o povo não se arreganha. Fresteja,
num
saber peculiar, até o que dá por desacontecido,
essa
tal de Copa que não teve. Seria pedir muito que calassem
os
sorrisos possíveis!
Perto
deles, quase invisível, um grupo se prepara para outra peleja.
Máscaras
em prontidão, tecem na base do assim-seja
o
trajeto da próxima contenda.
Qual
cabeças num circo trágico e íntimo,
a
bola vai rolar pelos campos, em estádios amarelados.
Que
se estendam os tapetes molhados
de
suor, enfeitados de confete, sujos de sangue.
Voa,
canarinho, voa!
Zeh
Gustavo é músico e escritor. Sambista, compõe e canta com o grupo Terreiro de
Breque, do qual é fundador. É intérprete do Cordão do Prata Preta e da Banda da
Conceição, blocos de carnaval do Rio. Na literatura, publicou, entre outros
títulos, “Pedagogia do Suprimido” (poesia, Verve, 2013), “A Perspectiva do
Quase” (poesia, Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (poesia, Escrituras,
2005). Em 2012 e 2014 foi um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro
no Porto). Integrou a coletânea de contos “Porto do Rio do Início ao Fim”
(Rovelle, 2012), com o texto “Comuna da Harmonia”.
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