domingo, 6 de julho de 2014

Ivan Junqueira



A imortalidade


O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,

onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?

Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda

do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora

algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?

E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?

Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?

O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?

Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?

Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?

Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?

Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume

de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante

é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.

É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.

E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio

que enche toda a tua tarde.





Nascido no Rio de Janeiro, o poeta e tradutor Ivan Junqueira, sexto ocupante da Cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras (ABL), morreu em 03 de julho de 2014.  Foi editor executivo da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. Em comemoração aos 50 anos de sua estreia na literatura e pelos 80 anos que faria em 3 de novembro deste ano, a Editora Rocco lança o inédito livro de poemas Essa música ainda neste mês, e Reflexos do sol-posto, uma coletânea de poemas, em outubro. A Editora Nova Fronteira programou a edição de bolso da premiada tradução que Ivan Junqueira fez dos poemas do americano T.S. Eliot. Outras obras de Junqueira, como O outro lado (poesia, Record) e Testamento de Pasárgada (Global), antologia crítica sobre Manuel Bandeira, também devem ganhar novas edições em breve.



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